terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Você Sabia? Espíritas ajudaram na libertação dos escravos no Brasil


Daniel Simões do Valle

Portal de Notícias  UOL 



     A ideia da abolição tornou-se, ao longo da década de 1880, um guarda-chuva sob o qual se 
agasalharam-se diferentes tendências e matizes”, esclarece a historiadora Maria Helena Machado, 
em o plano e o pânico. Nesse rol, podemos incluir as propostas defendidas pelos espíritas. 
A preocupação dos adeptos da doutrina codificada por Allan Kardec com a escravidão já vinha de longa data.

   Em julho de 1869, o primeiro periódico espírita brasileiro, publicado em Salvador, assumia 
o seguinte compromisso: 
O Écho d’Além-Tumulo deduzirá de cada assinatura realizada 1$000, cuja soma será anualmente 
publicada e destinada para dar liberdade a escravos, de qualquer cor, do sexo feminino, de 4 a 7 anos 
de idade, nascidos no Brasil”.

   Para alguns espíritas, o compromisso com o fim da escravidão precedeu sua conversão à doutrina. 
Esse era o caso de importantes lideranças do espiritismo na corte, como Antônio da Silva Neto, 
Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti, Francisco Leite de Bittencourt Sampaio e Francisco Raimundo 
Ewerton Quadros. Ainda na década de 1860, eles já se haviam manifestado contrários ao trabalho escravo.

  Naquela época, a proposta mais recorrente era “emancipação”, que consistia em adotar medidas 
paulatinas que contribuíssem para substituir gradativamente a mão de obra escrava pelo trabalhador 
livre. O termo “abolição” era evitado nas discussões políticas, uma vez que a possibilidade de libertar 
todos os escravos de uma só vez era refutada até mesmo por alguns dos que condenavam o cativeiro. 
Temia-se que tal decisão pudesse redundar em drásticas consequências, tais como: a 
desorganização da produção agrícola, a crise econômica, o despreparo do escravo para a vida em 
liberdade e a desordem 
social. Por isso, havia o entendimento de que era necessário preparar o país para a mudança.

LIBERTAR E EDUCAR OS ESCRAVOS

   Movido por esse ideal e com intuito de propor soluções para o problema, o engenheiro Antônio da Silva 
Neto publicou três trabalhos:Estudos sobre a emancipação dos escravos no Brasil (1866), Segundos 
estudos sobre a emancipação dos escravos no Brasil (1867) eA Coroa e a emancipação do 
elemento servil (1869). Neles, defendia a libertação dos filhos das escravas, a adoção de medidas para 
educá-los e a extinção da escravidão no prazo de 20 anos.

   Bezerra de Menezes, médico e político reconhecido na corte, tomou iniciativa semelhante e, em 1868, 
publicou o opúsculo A escravidão no Brasil e as medidas que convém tomar para extingui-la sem dano 
para a nação, no qual também defendia a libertação dos filhos de ventre escravo.

   A proposta apresentada por ambos não era uma novidade, nem eles eram os únicos a defendê-la. 
Na verdade, ela estava presente nos jornais e nos folhetos que circulavam pelas ruas da corte. 
Além disso, tal medida encontrava-se em discussão no Parlamento, mas só seria aprovada em 1871, 
por meio da Lei do Ventre Livre.

   Esse debate público sobre a escravidão se acirrou nos anos seguintes e fervilhou na década de 1880, 
quando já se defendia abertamente a necessidade urgente de abolição do trabalho escravo. Nesse 
contexto, a imprensa tornou-se uma verdadeira tribuna política. José do Patrocínio (1853-1905) 
é um caso exemplar de como os abolicionistas utilizaram os jornais para formar uma opinião pública 
favorável ao fim da escravidão. Atuando à frente de alguns periódicos, como Gazeta de Notícias, 
Gazeta da Tarde e Cidade do Rio, ele disparava constantes ataques contra o escravismo.

   Nesse momento, Antônio da Silva Neto, Bezerra de Menezes, Bittencourt Sampaio e Ewerton Quadros
estavam em plena militância espírita, ocupando papel de destaque em instituições espíritas da 
corte e contribuíam ativamente nos periódicos espíritas em circulação. As experiências adquiridas por 
esses homens em suas trajetórias intelectual, profissional e política exerceram forte influência na 
condução dada por eles ao trabalho de difusão do espiritismo no Brasil. Com suas convicções e em diálogo 
com os princípios espíritas, eles contribuíram para que as instituições espíritas se posicionassem 
diante do debate sobre a escravidão.

KARDEC E A ESCRAVIDÃO 

   Em O livro dos espíritos, Allan Kardec foi bem claro ao tratar do assunto. Ao serem questionados, os 
espíritos responderam: “É contrária à lei de Deus toda sujeição absoluta de um homem a outro 
homem. A escravidão é um abuso de força. Desaparecerão com o progresso, como gradativamente 
desaparecerá todos os abusos”. Desse modo, o direito à liberdade seria um princípio fundamental da 
doutrina espírita por ser uma lei divina, logo toda forma de escravidão seria condenável. No 
entanto, que interpretação os espíritas fizeram desse ensinamento? As páginas da imprensa espírita 
trazem as respostas para essa questão.

   No final do século XIX, a imprensa consolidara-se como um importante veículo difusor de ideias. 
Havia mais jornais em circulação e crescia o público leitor. Os espíritas estavam atentos a essas 
mudanças e, desde cedo, elegeram os periódicos como um canal de propaganda espírita. Na década 
de 1880, circula vam na corte dois importantes periódicos espíritas: a Revista da Sociedade 
Acadêmica Deus, Cristo e Caridade e O Reformador. A imprensa espírita tinha como principal 
objetivo a divulgação dos princípios da doutrina e a refutação dos ataques dos detratores. No entanto, 
não se omitia em relação às questões em debate no cenário nacional e não foi diferente quanto à 
escravidão e sua abolição.

   Desde o início, a imprensa espírita assumiu uma postura contrária à escravidão, mas nem sempre 
defendeu a abolição. Em artigo publicado em julho de 1882, na Revista da Sociedade Acadêmica Deus, 
Cristo e Caridade, a redação do periódico manifestava-se a favor da emancipação dos escravos, mas 
afirmava que “a abolição é prejudicial ao escravo e perniciosa à sociedade”. No entanto, ao longo da 
década de 1880, com o avanço da campanha abolicionista, houve uma mudança de posicionamento. 
Os espíritas foram abandonando o tom mais moderado e passaram a defender o fim imediato da escravidão.

   Para os espíritas da corte, a extinção do cativeiro era uma entre outras reformas fundamentais 
para o progresso do país, tais como: o estabelecimento de um Estado laico (uma forma de limitar 
o ainda marcante poder da Igreja), a liberdade de consciência, a garantia do acesso à terra e o estímulo 
à vinda de imigrantes. Desse modo, além de dialogarem com os abolicionistas, os espíritas também 
estavam integrados ao debate político da época, adotando posicionamentos que os aproximavam de certos agrupamentos políticos como os “novos liberais”, os “liberais republicanos” e os “positivistas abolicionistas”.

   Nas páginas da imprensa, os espíritas defenderam o fim da escravidão por via legal, sem estimular agitações ou revoltas. Seu discurso sempre esteve voltado para os senhores de escravos, os legisladores e o governo imperial. Em 15 de novembro de 1884, um artigo publicado no Reformador, assinado com o pseudônimo de Sedora, cobrava da classe política uma atitude para livrar o país dessa doença: “Façam os estadistas como os cirurgiões, extirpem o cancro que vicia e corrói o organismo social, acabem com a escravidão”. Noutras ocasiões, o recurso era apelar ao sentimento cristão da população, em especial dos senhores, para estimulá-los a conceder alforria aos seus cativos.
Com a reencarnação, “o senhor de hoje é o escravo de amanhã”.

   Assim como outras correntes abolicionistas, os espíritas avaliavam o problema da escravidão considerando os aspectos políticos, econômicos e sociais; no entanto, eles construíram discursos originais ao analisar a questão do ponto de vista espiritual. Na perspectiva espírita, a luta contra a escravidão era um movimento que 
ocorria em dois planos: no material e no espiritual. Em várias oportunidades, eles rogaram a 
assistência da espiritualidade na condução do problema, atribuíram os avanços obtidos ao apoio dos 
espíritos desencarnados e divulgaram comunicações espíritas favoráveis ao fim do cativeiro.

   Durante evento, em 1886, que lembrava o desencarne de Allan Kardec, o orador, Manoel Fernandes 
Figueira, evocou o auxílio do mundo espiritual: “Venha toda essa legião de espíritos da América do Norte 
para auxiliar a obra da redenção na América do Sul” (Reformador, 1º de maio de 1886). Figueira 
pedia a contribuição de alguns ilustres já desencarnados como Washington, Lincoln, Victor Hugo, Luís 
Gama e tantos outros que haviam dado provas de “ardente caridade”. Desse modo, os espíritas entendiam 
que a transformação social seria fruto do intercâmbio entre o mundo terreno e o mundo espiritual.

   A reencarnação também foi um argumento importante para sensibilizar ou mesmo ameaçar os senhores. “Se conheceis a verdade da multiplicidade das existências humanas, sabereis também que o senhor de 
hoje é o escravo de amanhã, como este já foi o dominador da véspera” (Reformador, 13 de maio de 1885). Na perspectiva espírita, a situação do senhor era pior do que a do escravo, pois este já estaria expiando suas 
faltas nesta existência, enquanto o senhor, ao subjulgar seu irmão, estaria comprometendo seu futuro 
espiritual e assumindo novas dívidas perante a justiça divina.

   “Podemos, pois, nós que trabalhamos por ser espíritas, esquivar-nos a auxiliar aqueles que se 
afanam na grande obra de redenção dos cativos?” (Reformador, “Emancipação”, 13 de maio de 1885). Tal pergunta soava como uma convocação. O Reformador, então órgão oficial da Federação Espírita 
Brasileira, conclamava os espíritas a cerrar fileiras com os abolicionistas. Em sucessivos artigos, 
durante a década de 1880, o periódico defendeu ser um dever de todo espírita apoiar a causa. Em 15 de 
julho de 1887, o compromisso era reforçado: “A nós espíritas que respeitamos o Cristo como o nosso 
Mestre, o nosso Modelo e o nosso Chefe cabe o posto de avançada nesta cruzada bendita de liberdade”. 
De fato, os espíritas abraçaram a causa.

CARTAS DE ALFORRIA NOS CENTROS ESPÍRITAS

   Durante a campanha abolicionista, as instituições espíritas da corte mobilizaram-se frequentemente 
para arrecadar donativos que poderiam ter como destino o Fundo de Emancipação, ou mesmo a 
compra imediata da carta de liberdade. Nas festas organizadas pelos espíritas nas datas de 
nascimento e desencarne de Allan Kardec ou no aniversário de um centro espírita, o ponto alto era a 
entrega de uma carta de liberdade a um escravo.

   Segundo o historiador Eduardo Silva, no artigo “Resistência negra, teatro e abolição”, essa prática 
havia se tornado comum entre os abolicionistas. Ele afirma que “não houve grande benefício, 
festa ou comemoração abolicionista que não se encerrasse com a libertação de um ou mais escravos, 
levando os espectadores ao arrebatamento, às lágrimas e ao convencimento íntimo”.

   Havia uma rede envolvendo os espíritas e os movimentos abolicionistas. Um “grande número de 
associações libertárias, beneficentes, abolicionistas, lojas maçônicas e órgãos da imprensa” enviava 
seus representantes para os eventos realizados pelas instituições espíritas, conforme noticiou o 
Reformador em 15 de maio de 1883. Os espíritas, por sua vez, marcavam presença nas atividades 
organizadas por esses grupos e divulgavam suas ações em seus órgãos de informação.

   Em março de 1884, quando a corte mergulhou em longos dias de festejos para comemorar a 
abolição da escravidão no Ceará, a Federação Espírita Brasileira nomeou comissões para representá-la
no evento e, através do Reformador saudou o esforço das sociedades abolicionistas e a importante 
vitória conquistada.

   Em 13 de maio de 1888, o clima de alegria que envolveu a cidade do Rio de Janeiro foi ainda maior 
e se estendeu por uma semana de comemorações. A extinção da escravidão no Brasil foi um 
acontecimento intensamente exaltado nas páginas do Reformador. Ao longo da década de 1880, o 
abolicionismo havia deixado de ser uma convicção de algumas lideranças espíritas para se tornar 
um posição adotada pelas instituições espíritas da corte. Desse modo, a imprensa espírita 
representou o pensamento de uma coletividade que, além de ser espírita, era abolicionista.
 

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